Filosofia analítica: Wittgenstein e o argumento dalinguagem privada
José Renato Salatiel, Especial para a
Página 3 Pedagogia & Comunicação
Linguagem e percepção
Para a tradição filosófica desde Descartes, a linguagem se refere a um conjunto
de dados dos sentidos. A frase "dor de dente", assim, se refere a uma
sensação de dor que a pessoa sente em algum dente.
Mas como saber se o que estou sentindo e chamo de "dor de dente" corresponde àquela mesma sensação que você teve e que também chamou de "dor de dente"? Ou o que você chama de "amor", será que é o mesmo referente que eu designo quando uso essa palavra? Ou ainda, quando um repórter na TV pergunta para uma pessoa o que ela está sentindo, depois de sobreviver a uma enchente, por exemplo, o relato corresponderia realmente às mesmas sensações que teríamos se tivesse acontecido conosco?
É razoável supor que podemos usar palavras de forma equivocada, como quando digo que uma cor é "lilás" e outra pessoa diz "roxo". Estamos tendo a mesma percepção do espectro de luz? Diz o filósofo: "O essencial das vivências privadas não é que cada um possua seu exemplar, mas que nenhum saiba que se o outro tem também isto ou algo diferente. Seria pois possível a suposição - ainda que não verificável - de que uma parte da humanidade tenha uma sensação do vermelho e outra parte uma outra sensação" (IF § 272).
Como aprenderíamos a ligar o nome a uma coisa, se o nome fosse inventado tendo como base a minha percepção das coisas? Como saber que estamos falando da mesma coisa? Wittgenstein dá ainda o exemplo da caixa contendo um besouro: "Suponhamos que cada um tivesse uma caixa e que dentro dela houvesse algo que chamamos de 'besouro'. Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas por olhar seu besouro. Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa" (IF § 293).
Poderia também inventar um nome completamente distinto para as coisas de modo que somente eu compreendesse aquilo, como uma linguagem privada que não pudesse compartilhar com o mundo. Um vocabulário e uma gramática desconhecida dos demais, um código próprio que somente quem o criou pudesse compreender.
O argumento da linguagem privada de Wittgenstein nega que tal coisa seja possível. Basicamente, faz isso por rejeitar a noção de que as palavras tenham como referentes diretos as sensações, que elas representariam.
Mas como saber se o que estou sentindo e chamo de "dor de dente" corresponde àquela mesma sensação que você teve e que também chamou de "dor de dente"? Ou o que você chama de "amor", será que é o mesmo referente que eu designo quando uso essa palavra? Ou ainda, quando um repórter na TV pergunta para uma pessoa o que ela está sentindo, depois de sobreviver a uma enchente, por exemplo, o relato corresponderia realmente às mesmas sensações que teríamos se tivesse acontecido conosco?
É razoável supor que podemos usar palavras de forma equivocada, como quando digo que uma cor é "lilás" e outra pessoa diz "roxo". Estamos tendo a mesma percepção do espectro de luz? Diz o filósofo: "O essencial das vivências privadas não é que cada um possua seu exemplar, mas que nenhum saiba que se o outro tem também isto ou algo diferente. Seria pois possível a suposição - ainda que não verificável - de que uma parte da humanidade tenha uma sensação do vermelho e outra parte uma outra sensação" (IF § 272).
Como aprenderíamos a ligar o nome a uma coisa, se o nome fosse inventado tendo como base a minha percepção das coisas? Como saber que estamos falando da mesma coisa? Wittgenstein dá ainda o exemplo da caixa contendo um besouro: "Suponhamos que cada um tivesse uma caixa e que dentro dela houvesse algo que chamamos de 'besouro'. Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas por olhar seu besouro. Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa" (IF § 293).
Poderia também inventar um nome completamente distinto para as coisas de modo que somente eu compreendesse aquilo, como uma linguagem privada que não pudesse compartilhar com o mundo. Um vocabulário e uma gramática desconhecida dos demais, um código próprio que somente quem o criou pudesse compreender.
O argumento da linguagem privada de Wittgenstein nega que tal coisa seja possível. Basicamente, faz isso por rejeitar a noção de que as palavras tenham como referentes diretos as sensações, que elas representariam.
Linguagem e comportamento
Para o "segundo"
Wittgenstein, não aprendemos que a palavra "dor de dente" significa
uma sensação de dor de dente, mas aprendemos a expressar um comportamento. Em
outras palavras, uma criança não aprende a essência de um dado sensível representado por
um signo (a palavra "dor", por exemplo), mas como expressar um
determinado comportamento, um uso prático.
Vejam o que Wittgenstein diz: "Como as palavras se referem a sensações? (...) Por exemplo, da palavra 'dor'. Esta é uma possibilidade: palavras são ligadas à expressão originária e natural da sensação, e colocadas no lugar dela. Uma criança se machucou e grita; então os adultos falam com ela e lhe ensinam exclamações e, posteriormente, frases. Ensinam à criança um novo comportamento perante a dor" (IF, § 244).
Quando uma criança sente dor, ela reage com uma expressão natural de dor, o choro. Mas fica muito difícil para uma mãe, por exemplo, saber se uma criança que chora está com dor de ouvido, cólica ou apenas irritada e com sono.
Com o tempo, a criança é adestrada a substituir uma expressão natural por uma outra, simbólica. Assim, quando sente dor, usa uma frase para expressar a dor, que substitui ou complementa um grito ou choro, dizendo "Estou com dor de ouvido" ou "Minha barriga dói".
Não somos, deste modo, ensinados a usar uma palavra para significar um objeto, mas um uso linguístico, simbólico e convencional, que pode substituir uma expressão natural para tais sensações.
Para Wittgenstein, o significado de uma linguagem é dado em seu uso, e como são usos diferentes, ele fala em jogos de linguagem. Não aprendemos o nome das coisas, mas um comportamento expressivo que substitui o comportamento natural.
Para concluir, a solução para o problema da caixinha do besouro: "Mas, e se a palavra 'besouro' tivesse um uso para essas pessoas? Neste caso, não seria o da designação de uma coisa. A coisa na caixa não pertence, de nenhum modo, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa poderia também estar vazia. Não, por meio desta coisa na caixa, pode-se 'abreviar'; seja o que for, é suprimido. Isto significa: quando se constrói a gramática da expressão da sensação segundo o modelo de 'objeto de designação', então o objeto cai fora de consideração, como irrelevante" (IF § 293).
Isso quer dizer que não importa a sensação que tenhamos - a suposta "essência" de nossa linguagem -, mas simplesmente sua função, seu uso no cotidiano.
Vejam o que Wittgenstein diz: "Como as palavras se referem a sensações? (...) Por exemplo, da palavra 'dor'. Esta é uma possibilidade: palavras são ligadas à expressão originária e natural da sensação, e colocadas no lugar dela. Uma criança se machucou e grita; então os adultos falam com ela e lhe ensinam exclamações e, posteriormente, frases. Ensinam à criança um novo comportamento perante a dor" (IF, § 244).
Quando uma criança sente dor, ela reage com uma expressão natural de dor, o choro. Mas fica muito difícil para uma mãe, por exemplo, saber se uma criança que chora está com dor de ouvido, cólica ou apenas irritada e com sono.
Com o tempo, a criança é adestrada a substituir uma expressão natural por uma outra, simbólica. Assim, quando sente dor, usa uma frase para expressar a dor, que substitui ou complementa um grito ou choro, dizendo "Estou com dor de ouvido" ou "Minha barriga dói".
Não somos, deste modo, ensinados a usar uma palavra para significar um objeto, mas um uso linguístico, simbólico e convencional, que pode substituir uma expressão natural para tais sensações.
Para Wittgenstein, o significado de uma linguagem é dado em seu uso, e como são usos diferentes, ele fala em jogos de linguagem. Não aprendemos o nome das coisas, mas um comportamento expressivo que substitui o comportamento natural.
Para concluir, a solução para o problema da caixinha do besouro: "Mas, e se a palavra 'besouro' tivesse um uso para essas pessoas? Neste caso, não seria o da designação de uma coisa. A coisa na caixa não pertence, de nenhum modo, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa poderia também estar vazia. Não, por meio desta coisa na caixa, pode-se 'abreviar'; seja o que for, é suprimido. Isto significa: quando se constrói a gramática da expressão da sensação segundo o modelo de 'objeto de designação', então o objeto cai fora de consideração, como irrelevante" (IF § 293).
Isso quer dizer que não importa a sensação que tenhamos - a suposta "essência" de nossa linguagem -, mas simplesmente sua função, seu uso no cotidiano.
Conhecimento empírico
As reflexões de Wittgenstein o levam a concluir que é
impossível falar de uma linguagem privada, pois o que se aprende não é uma
palavra que designa uma coisa, mas um conjunto de regras sociais para cada uso
que fazemos da linguagem. Isso tem, pelo menos, duas consequências para a
filosofia analítica:
·
Como
a linguagem não descreve sensações de objetos físicos exteriores, não há nenhum
sentido em se falar de enunciados verdadeiros ou falsos em relação à palavra
com seu objeto.
·
Não
tendo como distinguir entre enunciados verdadeiros ou falsos em relação a questões
de fato, se torna impossível fundamentar o conhecimento empírico nos dados dos
sentidos, com queriam os positivistas lógicos.
As especulações de Wittgenstein iriam repercutir no trabalho de teóricos importantes, como no pragmatismo do filósofo americano Willard Van Orman Quine (1908-2000) e na teoria dos atos de fala do filósofo inglês John Langshaw Austin (1911-1960).
As especulações de Wittgenstein iriam repercutir no trabalho de teóricos importantes, como no pragmatismo do filósofo americano Willard Van Orman Quine (1908-2000) e na teoria dos atos de fala do filósofo inglês John Langshaw Austin (1911-1960).
José Renato Salatiel, Especial para a Página 3
Pedagogia & Comunicação é jornalista e professor universitário.
Bibliografia
·
WITTGENSTEIN, Ludwig. "Investigações Filosóficas", em
Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1991. [Citados como IF, seguido do
parágrafo].