https://questcosmic.wordpress.com/2014/10/12/os-infinitos-jogos-de-linguagem-de-wittgenstein/
Os Infinitos Jogos de Linguagem de Wittgenstein
‘Noite…Um silvo no ar…Ninguém na estação…E o trem…Passa sem parar.’ (Guilherme de Almeida)
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foi um dos filósofos mais influentes do século 20, e principal responsável pela chamada… — ‘virada linguística da filosofia‘… movimento que colocou a própria linguagem no centro da reflexão filosófica – deixando de ser apenas…um meio para nomear coisas…ou transmitir pensamentos.
Em Wittgenstein, como em Sócrates, vemos um filósofo que procura viver coerentemente com suas crenças filosóficas. (Ele recusou a fortuna de sua família e trabalhou em funções humildes, como ajudante de jardineiro em um mosteiro, e porteiro em um hospital.)
Em sua trajetória intelectual — Wittgenstein foi capaz de realizar uma profunda revisão de sua própria teoria, a tal ponto, que muitos estudiosos de sua obra filosófica a dividem em 2 períodos… — o “1º Wittgenstein“… – do seu ‘Tractatus Logico-Philosophicus’, publicado em 1921… — e o “2º Wittgenstein“… – cuja obra principal é ‘Investigações Filosóficas’… publicada postumamente.
Embora se tratem de escolas filosóficas diferentes, a ‘linguagem’ permanece o tema principal de sua reflexão… unificando sua obra.
Tractatus Logico-Philosophicus
No “Tractatus Logico-Philosophicus” — um conjunto de aforismos e corolários, Wittgenstein tenta romper com a visão tradicional da filosofia…que vê o mundo como um mero agregado de coisas… pensadas de modo independente umas das outras. Tal visão não é incorreta…apenas incapaz de explicar qual relação existe entre elas… “As coisas… por si só, não têm sentido… – só ganham significado, quando relacionadas entre si.”
Da mesma forma – como não conseguimos pensar fora do espaço e do tempo, também não podemos pensar em nenhum objeto fora da possibilidade de sua ligação com outros.
Para que algo possa ter significado… – é preciso que esteja dentro de uma relação com outros objetos, num determinado estado de coisas. E, estar ligado a um estado de coisas é, ao mesmo tempo, a condição para que um objeto possa aparecer, e ser pensado.
Com as palavras acontece a mesma coisa… Elas só adquirem significado quando inseridas em uma frase, pois só estas podem ser consideradas verdadeiras ou falsas.
Dizer – por exemplo – “cadeira” é algo que carece de complemento para se tornar uma unidade significativa. É somente quando tenho uma frase como ‘a cadeira está na cozinha’ que posso dizer se essa proposição é verdadeira ou falsa… Porém, eu não poderia saber se uma frase é ou não verdadeira…se ela não correspondesse à estrutura (ordem das coisas) do mundo… – Mas, então… como pode a linguagem representar a estrutura do mundo?
Para Wittgenstein, essa possibilidade só existiria por uma correspondência entre mundo…pensamento, e linguagem. Ou, de outra forma, entre a ‘figuração’ do mundo na linguagem… – e o mundo ‘afigurado‘... Como diz Wittgenstein:
“Na figuração, e no afigurado, deve haver algo de idêntico a fim de que um possa ser, geralmente…uma figuração do outro. E, o que a figuração deve ter em comum com a realidade para poder afigurá-la à sua maneira…correta ou falsamente – é a sua forma de afiguração“.
Portanto – não basta que exista uma correspondência entre a palavra e a coisa designada, pois nas frases falsas, também se fala sobre objetos (caso contrário, elas não seriam falsas, mas apenas absurdas). O que determina a verdade…ou falsidade é – se a conexão entre as palavras na proposição… é igual à conexão entre os objetos no mundo – portanto – deve haver uma identidade entre a estrutura das coisas, e a estrutura do pensamento.
O que permite que a linguagem possa corresponder ao mundo… é que ambos partilham da mesma forma lógica. Esta é, por consequência, a condição de possibilidade da afiguração…Mas, como Wittgenstein poderia demonstrar isso? Como provar que pensamento, linguagem e mundo têm a mesma forma lógica?
Aqui chegamos a um ponto decisivo para a filosofia – segundo Wittgenstein, isso não pode ser demonstrado, é algo que apenas se mostra. Para demonstrar aquilo que se mostra através da linguagem e do mundo, seria preciso uma teoria que se referisse à totalidade do mundo e da linguagem. No entanto isso é impossível, pois quando falamos sobre o mundo, já estamos dentro da forma lógica, e não há como vê-la de fora. Teríamos que colocar-nos, como diziam os medievais, no ponto de vista de Deus – algo que é igualmente impossível…
Para podermos representar a ‘forma lógica’ — deveríamos poder nos instalar com a ‘proposição’ fora da lógica, quer dizer, fora do mundo.
Função da filosofia… (esclarecer pensamentos)
A filosofia não tem nada a dizer sobre investigações do ‘sentido do mundo’ — como totalidade, já que a ‘forma lógica’ é a condição possível de toda figuração, mas não pode ela própria ser afigurada.
“A forma lógica não se explica… – se mostra; e o que só pode ser mostrado, não pode ser dito.”
Ao invés de especular sobre a totalidade do mundo… e da linguagem – a filosofia deveria ocupar-se de uma função mais modesta – qual seja…a de esclarecer a linguagem, e ajudar a formular proposições mais precisas…Assim, quando se pensar em algo metafísico como ‘ser’ ou “essência”…deve-se construir essa proposição com um significado inteligível. Pois, pelas palavras de Wittgenstein:
“O fim da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos, antes como que turvos e indistintos, tornando-os claros, e precisamente delimitados.”
Todavia… não deixa de ser curioso, que o próprio Wittgenstein teve de se valer de proposições gerais e metafísicas para expor suas teses. Ele afirmava, por exemplo, que ‘a totalidade das proposições é a linguagem’; ‘a proposição é uma figuração da realidade’; e… ‘os limites do mundo são os limites da minha linguagem’… etc.
Ou seja – ele próprio não se limitava ao que se mostra, mas pretendia falar sobre como as coisas são, em sua totalidade.
Assim, o seu Tractatus deve ser entendido, também como uma pretensão de dizer algo metafísico, e portanto, um contrassenso.
Para sair dessa…Wittgenstein usa a genial ‘analogia da escada‘…que deve ser jogada fora, logo após se subir por ela…
A filosofia é essa escada…que ele usou para descrever a estrutura lógica do mundo e da linguagem… – Assim, feito isso, sua função está praticamente encerrada, e Wittgenstein, coerentemente com seu pensamento, preferiu mergulhar em um silêncio que durou vários anos, a continuar a dizer mais ‘contrassensos’… Conforme o filósofo:
“Minhas proposições elucidam dessa maneira; quem me entende, acaba por reconhecê-las como contrassensos… após ter escalado através delas, por elas – para além delas.”
Uma rápida comparação entre sua ‘obra-prima’…“Tractatus Logico-Philosophicus“, e sua obra póstuma — “Investigações Filosóficas“… é suficiente para perceber a radicalidade da mudança no pensamento de Wittgenstein. Embora permaneça com a mesma temática, ou seja, o ‘problema da linguagem‘, o Wittgenstein das ‘Investigações Filosóficas’ é profundamente crítico de si mesmo, a ponto de abandonar a forma sistemática e precisa do ‘Tractatus‘, pelo que chamou de… ‘um álbum de anotações e esboços de paisagens’ (às vezes… saltando rapidamente de um tema a outro – usando imagens e metáforas.)
Por outro lado – há certa continuidade em seu trabalho. No Tractatus ele pretendia romper com a visão tradicional da filosofia, que dava prioridade à função designativa da linguagem, e pouca importância às relações entre as palavras – ou, entre as coisas no mundo. Nas Investigações Filosóficas ele aprofunda essa temática, criticando inclusive, suas próprias ideias.
Partes ‘simples‘ da realidade “A meta da ciência deve ser, buscar as mais simples explicações para fatos complexos … e desconfiar delas.” (A. N. Whitehead)
Para Wittgenstein, o grande problema na filosofia da linguagem tem sua origem em Platão, que interpretava todas as palavras como ‘nomes próprios’, em que cada nome corresponde a um objeto. – Os nomes comporiam as unidades simples, das quais se formam as afigurações do mundo (sua ‘estrutura lógica’). Assim, sempre seria possível reduzir as unidades complexas de significação aos seus elementos mais simples.
Nas ‘Investigações Filosóficas‘… Wittgenstein coloca esse modelo em xeque, ao se perguntar quais são as partes simples que compõem a realidade. O que é simples…ou composto – é totalmente dependente do jogo de linguagem que se está jogando…Mas, o que é um… ‘jogo de linguagem’?
Wittgenstein não nos dá uma definição – pois é justamente com essa simples ideia de filosofia que tenta romper — a de que cada palavra… corresponde a um objeto.
A linguagem não é uma coisa morta… em que cada palavra representa algo, de uma vez por todas. – É uma atividade humana, situada na cultural, e na história.
Os jovens, por exemplo, adoram usar ‘termos diferenciados’, que correspondem ao seu grupo – mas que, fora dele, poucos entendem… Assim… ‘radical‘ pode ser usado para designar algo que é ‘maneiro‘ ou ‘massa‘…e, um sujeito ‘legal‘ pode ser considerado ‘sangue bom‘ ou ‘jóia‘ – dependendo do lugar onde viva.
A ideia de jogos de linguagem rompe com a visão tradicional de que aprender uma língua é dar nomes aos objetos. – Imagine, que você está em um passeio turístico, e se perdeu de seu grupo. E, no lugar em que você está – a população só fala o idioma local, que você desconhece… Como você faria para se comunicar?
– Talvez tentasse se comunicar primeiro por mímica…ou, tentasse desenhar o que queria. Os nativos falariam alguma coisa, na língua deles, e você talvez repetisse, na esperança de estabelecer algum ‘laço de comunicação’. Talvez com um bocado de paciência, acabassem se entendendo, e essa história acabaria num ‘final feliz’…(Naturalmente haveriam muito mais equívocos do que acertos — isso porque… mesmo gestos que para nós são banais, como acenar a cabeça… — podem significar coisas muito diferentes, em outra cultura.)
É claro que designar objetos é uma parte importante da linguagem… – mas… esta não se reduz a isso. A criança ao aprender a falar, por exemplo…ainda não é capaz de entender elucidações indicativas (mímica, olhares, etc), justamente por desconhecer o significado daquela palavra que queremos representar.
Linguagem e formas de vida “Também podemos conceber que todo processo do uso de palavras seja um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem a sua língua natal. — A estes jogos quero chamar ‘jogos de linguagem‘… e falarei – por vezes, de uma linguagem primitiva… – como tal”
Como ilustra Wittgenstein, quando mostramos um objeto para uma criança e dizemos: ‘este é o rei!’, essa elucidação só passa a fazer sentido enquanto denominação de uma peça de xadrez, se ela já sabe que é uma ‘figura do jogo’. O que pressupõe já ter jogado outros jogos – ou, que tenha assistido – ‘com compreensão’, a outras pessoas jogando.
Portanto, o aprendizado de uma linguagem não pode ser visto, simplesmente, como mero aprendizado da designação de objetos isolados… Esse é somente um ato secundário, num processo em que a criança — ao mesmo tempo que aprende a língua materna, também se apropria de um determinado entendimento do mundo. – A criança aprende junto com a linguagem, uma determinada forma de vida.
Formas de vida e jogos de linguagem constituem, portanto, as categorias centrais da nova imagem da linguagem – elaborada por Wittgenstein… Nessa nova imagem, a linguagem é sempre ligada a uma determinada ‘forma de vida‘ contextualizada dentro de uma práxis comunicativa interpessoal.
Josué Cândido da Silva, professor de filosofia da Universidade Santa Cruz – Ilhéus (BA). Bibliografia: Wittgenstein,”Tractatus Logico-Philosophicus”. Tradução, Luiz Henrique Lopes dos Santos – Edusp… # ‘A figuração do mundo’ # ‘Os infinitos jogos de linguagem’ ************************************************************************************
“De acordo com Jacques Lacan, na passagem do ‘paradigma da consciência’ da Filosofia Moderna a partir de Descartes, ao ‘paradigma da linguagem’ … esta não só representa a ferramenta de uma comunicação… Ela é o campo onde, numa perspectiva estruturalista, se definem o sujeito e sua subjetividade; e no qual o inconsciente, antes dum fato psíquico — é uma (hiper) realidade linguística” … (Gilson Iannini — ‘Da Revolução à Subversão’)
A lógica da linguagem de Wittgenstein
A análise das “Investigações Filosóficas” de Wittgenstein pressupõe um retorno à sua obra anterior a esta — o “Tratado Lógico-Filosófico“… Falar destas 2 fundamentais obras na atividade do autor… separadas por cerca de 20 anos, é falar de 2 fases distintas de Wittgenstein, já que é nas ‘Investigações’que o autor refutará…algumas das teorias defendidas no…‘Tratado Lógico-Filosófico‘.
Devemos, portanto, falar da 2ª fase de Wittgenstein – correspondente às ‘Investigações’ – como uma tentativa de demarcação e refutação da 1ª fase do ‘Tratado‘, quanto à sua influencia ‘neopositivista’ da linguagem.
No Tratado Lógico-Filosófico, o isomorfismo entre linguagem e realidade vai estar presente. Wittgenstein, juntamente com seus companheiros neopositivistas, defende a ideia de que a realidade — colocada fora do Homem, se apresenta como um referencial à linguagem. — Tudo aquilo que é passível (e possível) de ser enunciado, encontra um ‘referente extralinguístico’ ao qual, cada coisa em particular se refere.
Com esta teoria, é defendida uma perspectiva unitária…ou, um modelo canônico de linguagem, onde, no Tratado, os conceitos conclusivos da análise de linguagem são… — ‘univocidade‘ e ‘unidade formal‘.
O significado das palavras nos é fornecido por sua referência…a linguagem teria assim, uma ‘função representativa‘. Nesta perspectiva, a Lógica tem um duplo papel fundamental…Por um lado, se constitui como linguagem idealizante…confluente das linguagens naturais; e por outro… o caminho para alcançar a ‘essência da linguagem’.
Investigações filosóficas
A 2ª fase de Wittgenstein corresponde a um conjunto de refutações a algumas teorias … defendidas pelo autor no Tratado Lógico-Filosófico…Diz agora Wittgenstein, que o importante na linguagem não é a sua denotação… mas sim…a forma como a palavra é utilizada. – Ou seja, aquilo que atribui significado à linguagem…não é a sua referência ‘extra linguística’ — mas, sim… seu uso.
Neste novo argumento…no qual Wittgenstein refuta o isomorfismo da linguagem, há um descolamento da ‘linguagem-retrato‘ da realidade, abrindo-se caminho à sua ‘visão pluralista, pragmática e metafórica‘.
Inaugura-se aí, a ideia de que a linguagem possui um caráter pluralista, contrariamente ao enunciado no “Tratado Lógico-Filosófico”, de que a linguagem refletiria a generalização de um caráter abstrato, e unívoco.
Através da ideia de um certo pragmatismo, a linguagem é introduzida em formas e práticas de vida… ao mesmo tempo em que se afirma que a ‘linguagem idealizante‘ se constitui – apenas…como uma das diferentes formas de linguagem. – Ainda que, por vezes sejamos levados a pensar numa generalização, fica evidente a aplicação de uma pluralidade de jogos linguísticos, se afirmando como circunstanciais … ou, adaptados aos diferentes contextos implicados.
A imagem segundo a qual a nossa linguagem seria como uma ‘caixa de ferramentas’, em que os diversos utensílios desempenhariam funções diferenciadas, denota bem como Wittgenstein defende o seu argumento relativamente à grande diversidade do uso das palavras…Assiste-se então, ao abandono da generalização, e da unificação da linguagem, bem exemplificado através da ‘metáfora da cidade’; assim descrita por Wittgenstein:
”Nossa linguagem pode ser vista assim como uma cidade antiga… labirinto de travessas e largos, com reconstruções de diversas épocas – tudo isto bem circundado por uma multiplicidade de bairros vizinhos, com ruas e casas…uniformizadas.”
Com estes argumentos, Wittgenstein dá sua primeira estocada no ‘Tratado Lógico’…todavia, essa desconstrução vai ainda mais longe… — O papel da ‘Lógica‘ … como ‘supralinguagem’, colocada hierarquicamente no topo em relação às demais, também vai ser destruído — junto à visão unívoca da linguagem.
Enquanto que… no “Tratado Lógico-Filosófico” – a Lógica é entendida duplamente — como a ‘linguagem ideal‘…(que alberga as linguagens naturais), e também, como forma de tradução da essência linguística; nas “Investigações Filosóficas” ela é substituída pela ‘Gramática‘.
Análise gramatical (… a nova trajetória da linguagem) A linguagem possui domínios e subdomínios — não é um todo uniforme… — Fazer a gramática de seus termos é a tradução mais pragmática que se segue ao fazer lógica.
Levando em conta uma mudança no teor da ‘análise da linguagem‘ – passando ela a estar diretamente relacionada com usos concretos e particularizantes – e não mais com termos unívocos e idealizados… sua trajetória, agora… passa a estudar as regras do uso, e costumes de seus termos.
Com a defesa do argumento da linguagem enquanto uso…e, por consequência, a defesa de diferentes ‘jogos de linguagem‘… a Lógica é transportada – de um lugar primordial, para uma parte de um dos muitos jogos de linguagem… Ela adquire assim, o caráter de pertencer a um todo (sendo ela, apenas uma parte desse todo)… A Lógica passa a ser uma – entre outras – forma de estudar a linguagem.
Anulada a função única da linguagem, focalizada na representação – tarefa principal da Lógica… a Gramática tem como nova função — ir atrás dos vários usos da linguagem. Para isso se utiliza de uma ‘investigação gramatical‘ — por meio de certas analogias entre ‘formas de expressão’… Afasta-se assim, uma possível incompreensão pelo uso da palavra em outros domínios da linguagem – substituindo uma forma de expressão por outra… em um processo denominado ‘análise da forma de expressão‘.
Associado a esse ‘papel gramatical‘, encontra-se a tarefa da Filosofia…que, segundo Wittgenstein, tem um papel terapêutico, cabendo-lhe a função de encontrar e apontar os ‘problemas linguísticos’…os quais se consideram a base dos ‘problemas filosóficos’.
A ingerência de áreas científicas noutras áreas – ao nível do conteúdo do discurso… constitui-se — segundo Wittgenstein — na principal causa dos problemas filosóficos… Portanto, é função da filosofia verificar os vários aspectos da linguagem … e, por consequência — do próprio pensamento.
Teoria dos jogos de linguagem
Finalmente, uma das mudanças também verificada através da passagem do ‘Tratado Lógico-Filosófico’ para as “Investigações Filosóficas”… é a refutação da ‘linguagem privada’, ou seja, a ideia de uma linguagem solipsista válida, acaba, finalmente, por desaparecer com a ‘teoria dos jogos de linguagem’.
Nas “Investigações Filosóficas”, a defesa de uma inacessibilidade de linguagem é impraticável, porque seguir regras implica…diretamente, uma prática…ou uso — e… é essa práxis que gera o significado.
Dessa forma – Wittgenstein rejeita o solipsismo, uma vez que todas expressões psicológicas, em 1ª pessoa, não parecem exprimir conteúdo cognitivo.
Assim, é posto em causa o ‘privilégio epistêmico do sujeito’, pois é ilegítimo supor – em uma teoria linguística do pensamento, um ‘Eu absoluto’ que se conheça a priori perfeitamente.
Jaime Soares (Professor de Filosofia, Psicologia e Sociologia) Licenciado em Filosofia Faculdade de Letras do Porto. Análise do significado da linguagem de Wittgenstein *********************************************************************************
A linguagem e seus ‘limites’
Wittgenstein é um ‘pensador incontornável’ do século XX. Em vida, editou apenas 1 obra, “Tratado Lógico-Filosófico”…com umas escassas dezenas de páginas, mas o bastante para produzir uma “revolução” na filosofia…Numa primeira leitura desta obra, pode-se dizer que pretenda acabar com a ética… a filosofia… a religião — e, tudo aquilo que está desprovido de sentido. Numa leitura mais atenta, porém, vemos um pensador tentando preservar o mistério da vida… – e o que as palavras se revelam incapazes de descrever.
Sua filosofia é dividida em 2 grandes períodos:
I – Período anterior a 1929, que corresponde ao ‘Tratado Lógico-Filosófico’, assim como à enorme influência que exerce sobre o Círculo de Viena (a que nunca pertenceu), e sobre o neopositivismo;
II – Período posterior a 1930, que corresponde às ‘Investigações Filosóficas’, destacando-se também, a sua grande influência sobre a filosofia analítica em geral, e as escolas de Cambridge e Oxford, em particular.
Wittgenstein, Bertrand Russell… — e outros filósofos de sua época, estavam convencidos que grande parte dos problemas da filosofia se devia a um ‘uso imperfeito’ da linguagem corrente, o que levava a frequentes confusões. Havia, pois… — que estabelecer certos limites ao uso da linguagem, isto é … assinalar aquilo que faz sentido dizer, e o que não tem sentido afirmar. – Seriam estes…os seguintes temas:
a) A função da linguagem é descrever a realidade. (porque, a rigor, nada pode ser dado fora da linguagem.)
“Os limites da minha linguagem significam os limites do mundo.”
b) A estrutura lógica da linguagem. (…A Lógica determina a estrutura da linguagem, e é um espelho cuja imagem é o mundo.)
“A lógica não é uma doutrina. A Lógica é transcendental.”
O conjunto de todos os estados de coisas possíveis forma o espaço lógico da linguagem. Nada pode ser descrito fora deste espaço lógico. A lógica é o limite do mundo. Não podemos pensar nada ilógico…No espaço lógico estão contidas todas as possibilidades de existência, e de não existência; em suma, tudo aquilo que pode ser dito com sentido.
c) Existe uma isomorfismo entre a linguagem e realidade. Estudando os elementos que compõem a linguagem lógica perfeita…sabemos quais são aqueles que compõem a realidade, e vice-versa. – A linguagem é o que se reflete na sua natureza. Por esta razão, a realidade só pode ser compreendida através da linguagem, e o conhecimento consiste na análise da linguagem.
d) A ‘linguagem com sentido‘ é um conjunto de proposições que descrevem, ou figuram, um estado de coisas possível. O sentido vem do fato de descreverem algo que acontece na realidade… e, em última instância, é susceptível de verificação – ideia que irá ser explorada pelo Círculo de Viena.
e) A linguagem é a totalidade das proposições. ‘Proposição’ é a linguagem expressa em sons… constituindo uma figura da realidade — um modelo de uma situação possível. A proposição…expressão de um pensamento, tem algo em comum com o que é descrito: sua forma lógica. A cada elemento da proposição corresponde um objeto da realidade. Se algo ocorre na proposição… algo deve ocorrer no mundo — no caso do enunciado ser uma figura correta da realidade.
f) Pensamento e linguagem são uma mesma coisa.
g) O pensamento é constituído de ‘proposições complexas‘, ligando…entre…si… ‘nomes‘… – (signos simples dos objetos).
h) Limites da linguagem – dizer e mostrar. (… Não é possível “representar” as semelhanças existentes entre um retrato e o objeto retratado; também não é possível expressar…mediante enunciados…a forma lógica comum à linguagem e à realidade. – Esta, apenas se mostra, não se diz.)
i) As expressões que não descrevem nenhum estado de coisas possível… – não têm sentido, pois não figuram nada… (Entre este tipo de expressões sem sentido — isto é, que nada descrevem que aconteça na realidade… encontram-se as expressões filosóficas sobre a natureza das coisas, os valores, o sentido da vida, etc…Tratam-se de expressões que transcendem o mundo e, portanto, carecem de sentido.)
j) A filosofia nada pode dizer acerca do mundo, pois não é uma ciência.
k) A filosofia é uma atividade de análise da linguagem… – que nos pode ajudar a distinguir o que se pode, ou não dizer. A grande tarefa da filosofia consiste em clarificar o pensamento, e nada mais.
O Tratado assume, portanto, uma concepção universal do Homem…desprezando não apenas a história, mas também as diferentes culturas. A linguagem…e o pensamento a que se refere são comuns a todos os homens — independente da sua origem, ou cultura. Assim, a realidade – tendo apenas um único significado… é universalmente partilhada por todos…Porém, a partir de 1929, Wittgenstein abandona esta matriz universal da linguagem, fazendo-a mais e mais dependente da cultura a que está inserida. texto base ************************************************************************************
A filosofia analítica de Wittgenstein
1. O atomismo lógico e o Tractatus
Muito se tem escrito – nos últimos anos… sobre a vida e a obra de Ludwig Wittgenstein. Todavia é difícil enquadrar seu pensamento na história da filosofia, em parte devido à sua posterior iconoclastia…e – em parte, por este se revestir de reflexões que, à luz da história, podem parecer provincianas, e até mesmo desprovidas de qualquer importância filosófica.
A princípio… – lhe pareceu possível criar uma teoria de estrutura da linguagem que mostrasse, precisamente, o que podia, e o que não podia ser dito. E era de se supor, que entre as coisas que não podiam ser ditas… — a mais facilmente reconhecível fosse a metafísica.
O ‘atomismo lógico’ – primeira teoria desse tipo…foi sumariamente expresso por Wittgenstein…em seu ‘Tractatus Logico-Philosophicus‘ (1921) — obra que pretendia responder… em definitivo, às grandes questões da filosofia.
2. Estrutura da linguagem
De acordo com o Tractatus, tudo que pode ser pensado, também pode ser dito. Oslimites da linguagem são, portanto…os limites do pensamento, de modo que, uma “filosofia do que pode ser dito“… será uma teoria completa – a partir do que Kant denominou de entendimento…“Todos problemas metafísicos decorrem da tentativa de se dizer o que não pode ser dito.“
Wittgenstein dividiu todas as sentenças em complexas e atômicas… afirmando que, as primeiras eram construídas a partir das segundas, mediante regras de formação. Sendo as sentenças atômicas, aquelas que empregam os primitivos da linguagem, isto é, os nomes e predicados elementares que, indefiníveis, servem para distinguir, ou descrever, o que Wittgenstein chamou de fatos atômicos.
Só uma proposição completa pode ser verdadeira ou falsa e, por consequência, pode dizer-nos algo sobre o mundo. Dessa forma, o constituinte mais básico do mundo é o que corresponde à sentença atômica…Esse constituinte básico é o ‘fato atômico‘, sendo o mundo, portanto, a totalidade de tais fatos.
Os fatos complexos correspondem às proposições complexas e, para compreender tais fatos complexos – é necessário que compreendamos a complexidade da linguagem usada para expressá-los… Geralmente — muitas coisas a que nos referimos… são construções lógicas (ou ficções)…As sentenças que as descrevem, são abreviações de sentenças mais complexas, referentes a constituintes de fatos totalmente diferentes, porém mais básicos, em que essas “construções lógicas” não ocorrem.
Assim, o Tractatus proporcionou todo um sistema de argumentação filosófica, no que se refere a que fatos são atômicos — e quais não o são…Ele pretendia enunciar, claramente, aestrutura lógica do mundo, não se preocupando com seu conteúdo real.
A lógica ocupa-se apenas, da transformação sistemática dos ‘valores de verdade’; assim, uma linguagem lógica deve ser transparente a esses valores; sendo possível, portanto, perceber toda operação, em termos de transformação da verdade em falsidade.
3. A ‘teoria figurativa do significado’
A noção de ‘verofuncional’ confere exatidão e força à alegação de Wittgenstein, de haver uma distinção real entre sentenças atômicas, e…não-atômicas. Ela é capaz de dizer, não apenas qual é a distinção, mas – o mais importante, como somos capazes de entendê-la.
Não é difícil…para uma linguagem verofuncional, explicar de que modo a compreensão de sentenças atômicas leva à compreensão de todos os complexos infinitos que podem ser construídos a partir delas…As ‘condições de verdade’ de uma sentença complexa, formada de maneira verofuncional, podem ser extraídas imediatamente das ‘condições-de-verdade’ de suas partes. Como consequência – se compreendermos as ‘condições-de-verdade’ das partes, compreenderemos o Todo.
Além disso, Wittgenstein é capaz de proporcionar uma nova – e, aparentemente nítida distinção entre o necessário e o contingente, o analítico e o sintético, o a priori e o a posteriori…que se reduzem à distinção entre verdade lógica e contingência.
Para Wittgenstein, essa ‘teoria da verdade necessária’ tem consequência no fato das verdades necessárias serem vazias: ‘nada dizem, porque nada excluem’… (São compatíveis com todo ‘estado de coisas‘.)
O mundo é descrito pela totalidade das proposições atômicas, as quais são verdadeiras… – mas por serem atômicas…poderiam ser falsas – já que nada em sua estrutura…define o seu ‘valor-verdade’…
… O “espaço lógico” define as possibilidades da existência dos fatos… – as ‘sentenças atômicas verdadeiras’ descrevem o que é real – enquanto ‘tautologias‘ refletem propriedades do próprio espaço lógico. Porém, essa avaliação da linguagem suscita profundos problemas metafísicos. Em 1º, há o problema da relação entre sentenças atômicas, e fatos atômicos…
Wittgenstein chama essa relação de “figuração“, e tal metáfora tem enganado a muitos dos que tentam comentá-la…Ele também diz, que a relação não pode ser descrita, apenas mostrada. De fato, sua concepção era de que se deveria mostrar o que é mais básico, caso contrário, nunca poderíamos começar a descrição.
E, não está claro, exatamente, o que ele quis dizer com “mostrar”… Quiçá, a melhor maneira de compreender essa teoria — às vezes chamada de ‘teoria figurativa do significado’ – seja... “negar que possamos usar a linguagem, para nos situarmos entre a linguagem e o mundo”.
Não podemos avaliar, com palavras, a relação entre um fato atômico e uma proposição atômica, a não ser usando a proposição, cuja verdade estamos tentando explicar. Isto é, não podemos “pensar” no fato atômico — sem pensarmos na sentença que o “figura”.
… ‘Os limites do pensamento são os limites da linguagem‘. Wittgenstein, então — conclui seu livro com o lacônico enunciado: — “Do que não se pode falar… deve-se calar!…”
4. Wittgenstein e a Análise Linguística
O Tractatus possui um pouco da fascinação da primeira Crítica de Kant… ou seja, a fascinação de uma doutrina que, na medida do possível… ‘luta para descrever os limites do inteligível, somente para, ao fazê-lo, ser compelida a transcendê-los.’
Em momento algum – contudo, Wittgenstein reconhece a semelhança de seu pensamento com o de Kant, mas a comparação entre os dois filósofos torna-se cada vez mais inevitável, de tal modo que, alguns têm considerado a argumentação de sua obra póstuma, intitulada ‘Investigações Filosóficas’… o complemento final da – não menos famosa – ‘Dedução Transcendental‘… de Kant.
No Tractatus, a ‘metafísica do atomismo lógico‘ é apresentada quase que sem referência a qualquer teoria específica do conhecimento. – Desse modo… sua filosofia dá um passo na direção do positivismo lógico…pelo qual todas doutrinas metafísicas, éticas e teológicas são sem sentido…não devido a algum defeito do pensamento lógico, mas por não poderem ser verificadas.
O slogan do positivismo…“O significado de uma sentença é seu método de verificação” é extraído do ‘Tractatus‘ – assim como grande parte do aparato… mediante o qual se buscou livrar o mundo de ‘entidades metafísicas’ (… não em termos de uma ‘teoria genética‘ do significado; mas, sim… – de uma “teoria analítica da linguagem“.)
A filosofia posterior de Wittgenstein desenvolve-se a partir de uma reação à anterior, ou à determinada interpretação dela…extremamente influente. Nela, Wittgenstein renuncia totalmente ao atomismo e seus resultados — e…ao parar de publicar, inicia uma existência hermética e nômade, que assegura, até sua morte, que sua influência seja exercida apenas, sobre os que tiveram o privilégio de conhecê-lo pessoalmente — ou que chegaram a ver os manuscritos que ele ocasionalmente mostrou.
Concluirei, porém…este trabalho, com um esboço de certas doutrinas expressas em ‘Investigações filosóficas’ (1953), e ‘Observações sobre Fundamentos da Matemática’ …(I956), todas, obras póstumas.
Em virtude do fato de se relacionarem, diretamente, com a história da filosofia, tal como a tenho descrito até aqui, essas doutrinas propiciarão alguma indicação, ainda que superficial — de até que ponto sua ‘filosofia póstuma‘ tem influenciado, e transformado a tradição da ‘investigação intelectual’ – iniciada com Descartes.
5. O Segundo Wittgenstein
A ênfase da filosofia posterior de Wittgenstein é, decididamente, antropocêntrica. Embora ainda estivesse centrada em questões concernentes ao significado, e aos limites do significante, seu ponto de partida se tornou – não…imutáveis abstrações de um ideal lógico… mas, sim… esforços falíveis da comunicação humana.
Ao mesmo tempo, o elemento humano não seguiu a via usual da epistemologia, mas um caminho totalmente surpreendente. Wittgenstein o introduz, a priori, por meio de reflexões sobre a natureza da mente humana… e, sobre o comportamento social, que confere à essa mente, sua estrutura característica….O que é ‘dado’ não são os “dados sensoriais” dos positivistas… mas — as ‘formas de vida’ da antropologia kantiana.
Inicia assim, Wittgenstein, suas investigações sobre a natureza da linguagem, aceitando a tese do “caráter público do sentido“, que já levara Gottlob Frege (1848–1925) a rejeitar as teorias empiristas tradicionais do significado… O que resultou em uma nova avaliação da natureza da linguagem – bem como – numa revolucionária… ‘filosofia da mente‘.
Os problemas metafísicos, que Kant, Hegel e Schopenhauer tentaram, em vão, resolver são re-expressos como ‘dificuldades na interpretação da consciência’. Assim entendidos, repentinamente, se afiguraram ‘solúveis’.
A perspectiva social…por sua vez, levou Wittgenstein a se afastar da ênfase no conceito da verdade, ou… a considerar que tal ênfase, reflete uma exigência maior — a de que a ‘escolha humana’ cause um padrão de correção.
Tal padrão – sendo um ‘artefato humano‘ – que tanto produz as práticas linguísticas que o regem, quanto é por elas produzido, não é dado por Deus… nem jaz oculto na ordem natural…Contudo, isso não quer dizer que um indivíduo possa decidir — por si mesmo — o que é certo, e o que é errado, na arte da comunicação.
Ao contrário, o constrangimento da publicidade refreia, não somente cada um de nós, mas também todos – além disso, tal constrangimento está intimamente vinculado à concepção que fazemos de nós mesmos – seres independentes que observam o mundo – e nele agem.
Se nos opomos a verdades que nos parecem necessárias, tal se dá, apenas, porque fomos nós que criamos as regras que as fazem ser assim, e também podemos abrir mão daquilo que criamos. Esse tipo de reflexão, levou Wittgenstein a uma forma muito sofisticada de nominalismo…“Os fatos últimos são ‘linguagem’, formas de vida que se desenvolvem a partir dela, e a tornam possível.”
(A insustentável prioridade do Eu)
Wittgenstein realiza uma transição no plano da articulação da filosofia da linguagemcom a filosofia da mente, incorporando uma filosofia da ciência, a uma teoria do conhecimento. Ao realizar tal transição, tenta subverter a principal premissa de quase toda a filosofia ocidental desde Descartes, ou seja, a premissa da prioridade da 1ª pessoa.
Wittgenstein usa vários argumentos, destinados a mostrar o que essa premissa realmente significa, e ao fazê-lo, tenta demonstrar sua insustentabilidade…Esses argumentos, então reunidos…proporcionam – o que pode ser descrito como uma “figuração” da consciência humana. Tal figuração, possui aspectos – alguns metafísicos… outros, epistemológicos.
Ela envolve a rejeição da ‘busca cartesiana da certeza’ – o aniquilamento da concepção de que, os eventos mentais são episódios privados, que só podem ser observados pela própria pessoa – e a recusa de todas as tentativas de compreender a mente humana, isoladamente das práticas sociais, por meio das quais ela encontra expressão.
6. O argumento da ‘linguagem privada’
O mais famoso argumento… desenvolvido pela posição ‘wittgensteiniana’ veio a ser conhecido como… “argumento da linguagem privada“.
Objeto de recorrência das ‘Investigações Filosóficas’, esse argumento, em resumo, pode ser definido da seguinte maneira…
Há um privilégio peculiar envolvido no saber de nossas próprias experiências. Em certo sentido é absurdo sugerir que tenho de (ou poderia) descobrir estar equivocado a respeito delas no curso normal das coisas. Isso é o que chamamos ‘ilusão da 1ª pessoa’:
Posso ter mais certeza de meus estados mentais do que dos seus…porque os meus estados mentais, eu observo ‘diretamente’; e os seus – ‘indiretamente’.
Quando vejo você sentir dor, vejo o comportamento físico, suas causas, determinado estado complexo de um organismo. Mas isso não é a dor que você sente, apenas algo que a acompanha de modo contingente. A própria dor está oculta por sua expressão, só podendo ser diretamente observada, por aquele que a sofre.
Essa é, em suma, a ‘teoria cartesiana do espírito’ – e Wittgenstein alega que – tanto a teoria, quanto o que ela quer explicar … são ilusões.
Suponhamos que a teoria fosse verdadeira… Wittgenstein afirma então, que não poderíamos nos referir a nossas sensações por meio de palavras inteligíveis, numa ‘linguagem pública’ – pois as palavras só adquirem sentido – publicamente – ao serem associadas a condições acessíveis… que assegurem sua aplicação. – Tais condições determinarão… não somente seu sentido, mas também sua referência.
Wittgenstein alega que, a suposição de que essa referência seja privada, no sentido de, a princípio, só poder ser observada pela própria pessoa, é incompatível com a hipótese de que o ‘sentido é público‘. Por conseguinte…se os eventos mentais são como Descartes os descreve, nenhuma palavra, em linguagem pública, poderia, realmente, referir-se a eles.
Contudo, realmente…os cartesianos, com sua verve empirista, têm sempre, intencionalmente ou não, aceito essa conclusão, e escrito como se cada um de nós descrevesse nossas sensações numa linguagem que… em virtude de seu campo de referência ser – em princípio – inacessível aos outros… só é inteligível para quem a usa.
Wittgenstein opõe-se à possibilidade de tal linguagem privada. Tenta provar que não pode haver diferença — para quem fala essa linguagem… — entre como as coisas lhe parecem, e como elas são … e perder essa distinção significaria perder a ideia de ‘referência objetiva‘. Na realidade, a linguagem — ao contrário… torna-se um jogo arbitrário, onde… “O que parece certo é o certo – e, portanto… não se pode mais falar do certo.”
Isso leva a seguinte conclusão: não podemos referir-nos aos eventos mentais cartesianos (objetos particulares) numa linguagem pública…nem nos referir a eles numa linguagem privada… No entanto, seria possível dizer que eles – não obstante – podem existir?…
Wittgenstein opõe-se a tal possibilidade, dizendo que…“nada desempenhará a função de um algo sobre o qual nada se possa dizer“… Ademais, podemos referir-nos a sensações – desse modo…o que quer que sejam – as sensações não são eventos mentais cartesianos.
De fato, conheço meus próprios estados mentais sem observar meu comportamento, mas isso não se deve ao fato de estar observando algo mais… É apenas uma ilusão…suscitada pela ‘autoconsciência’ (que acompanha o uso público do ‘eu’) de que seja uma autoridade sobre ‘alguma coisa’ da qual só o ‘eu’ possui conhecimento.
7. A prioridade da 3ª pessoa
Apesar de ter rejeitado o método fenomenológico, Wittgenstein manifestou grande simpatia para com uma postura teórica…que se torna, por uma série de acidentes históricos — aliada deste método.
Pensadores… como o kantiano Wilhelm Dilthey…buscaram os fundamentos de uma percepção peculiarmente humana, pela qual o mundo seria considerado – não cientificamente… mas, sob o aspecto do seu “significado“.
Como alguns fenomenologistas, tais como Merleau-Ponty e Sartre… Wittgenstein argumentou que, percebemos e compreendemos o comportamento humano de maneira diferente da qual percebemos, e compreendemos o mundo natural. Isto é, explicamos o comportamento humano, apresentando razões… e, não causas. Dirigimo-nos ao nosso futuro — tomando decisões… e não, fazendo predições. — Compreendemos a ‘saga’ da humanidade, por objetivos, emoções e atividades – e, não mediante teorias preditivas.
Boa parte da filosofia de Wittgenstein, volta-se então, para a tarefa de descrever, e analisar as características do ‘entendimento humano’ – bem como…aniquilar o que ele considerou: “a vulgar ilusão… de que a ciência poderia produzir uma descrição de todas essas coisas, com as quais a nossa ‘humanidade’…(existência como agentes racionais) está mesclada”.
Ele defende, não só a posição de que, o conhecimento de nossas próprias mentes, pressupõe o conhecimento da mente de outros – mas, também… como assinala Max Scheler, que… “a convicção que temos da existência mental dos outros — é anterior, e mais profunda, que nossa crença na existência da própria natureza”.
Em outras palavras, apesar de ter atacado o método e a metafísica da fenomenologia, Wittgenstein compartilha com os fenomenologistas…o sentido atávico de que há um mistério nas coisas humanas, que não será revelado pela investigação científica…Tal mistério, não é dissipado pela explicação; apenas, pela cuidadosa descrição filosófica dos dados…
Para Wittgenstein – a diferença reside no detalhe de que… não é o conteúdo da experiência imediata que é fornecido… mas sim formas de vida que bancam a experiência.
A destruição da ‘ilusão cartesiana’ da 1ª pessoa tem, pois, 2 consequências. Não podemos iniciar as investigações a partir do caso da 1ª pessoa achando que temos um ‘paradigma de certeza’ pois, considerada isoladamente… ela nada nos proporciona. – Além disso, embora não exista, para mim, a distinção entre ser e parecer no momento em que contemplo minhas próprias sensações… — isso só ocorre porque falo uma ‘linguagem pública‘, que determina essa propriedade peculiar do conhecimento da 1ª pessoa.
O colapso do ser/parecer é um ‘caso degenerado’… Assim, posso saber que – se esse colapso é possível, é porque há outras pessoas no mundo além de mim… e, porque tenho em comum com elas – a natureza, e forma de vida.
De fato, habito um mundo objetivo em que as coisas são, ou podem ser diferentes do que parecem. Assim, de forma surpreendente, o argumento da ‘Dedução Transcendental’ de Kant acaba fundamentado. – A precondição do autoconhecimento é, afinal de contas, o conhecimento dos outros, e do mundo objetivo que os contém.
P.S. Muita coisa mudou na filosofia…desde que Wittgenstein produziu seus argumentos, e muita coisa não mudou… Entretanto – de uma coisa podemos ter certeza… A suposição ABSOLUTA na existência da primeira pessoa — que proporcionou um ponto de partida para a investigação filosófica – e levou ao racionalismo de Descartes, e ao empirismo de Hume – bem como à grande parte da epistemologia e metafísica modernas… – foi enfim deslocada do centro da filosofia. (Roger Scruton/UFSC) consulta: ‘Ideias em Movimento’