Num dos últimos postais fiz referência à fenomenologia de Husserl que foi utilizada pela Utopia Negativa, pelo Existencialismo contemporâneo e pelo desconstrucionismo esquerdista..
Em tom de brincadeira, digo que para se entender Husserl é aconselhável ― das duas, uma ― ter estudado psicologia, ou sofrer de esquizofrenia.
Em tom de brincadeira, digo que para se entender Husserl é aconselhável ― das duas, uma ― ter estudado psicologia, ou sofrer de esquizofrenia.
O conceito de “razão subjectiva” ― que posteriormente deu suporte ao desconstrucionismo subjectivista do esquerdalho existencialista e utópico-negativo (também chamado de “politicamente correcto”) ― veio de Husserl, mas a verdade é que Husserl não tem culpa. Se lermos alguma coisa de Derrida, temos uma ideia de como é possível elevar Husserl à potência máxima da especulação egológica.
Para simplificar conceitos, podemos equacionar:
Heidegger = Husserl – “evidência apodíctica” e transcendental do EU absoluto
Derrida = Husserl ∞+ Heidegger ∞
Husserl = misticismo + naturalismo da filosofia de tradição judaica
Panteísmo = naturalismo da filosofia de tradição judaica + misticismo = Espinosa
Descartes + Espinosa = Husserl
Fenomenologia
A “fenomenologia” é por definição o “estudo (ciência) dos fenómenos” entendidos tanto como resultado da constatação e análise das “aparências ” da realidade, como no sentido apodíctico kantiano, e como no sentido hegeliano da palavra que pressupõe a dialéctica entre as “aparências” (realidade) e a “evolução da razão subjectiva” em direcção à “ideia absoluta” representada pela “razão universal”.
Simplificando: o “fenómeno” é o que existe exterior à consciência humana.
Enquanto que a psicologia é uma ciência natural e entende a consciência humana como um produto natural (epifenomenalismo), Husserl entendeu a fenomenologia como uma ciência que não estuda os factos ― como faz a psicologia ― mas antes uma ciência das essências da consciência, na medida em que a fenomenologia não estudava “coisas” reais (factos) como fazia a psicologia, mas “coisas” irreais que caracterizam a relação do EU consigo mesmo e com o mundo dos fenómenos. A psicologia moderna absorveu parte da fenomenologia de Husserl.
A minha opinião é a que Husserl não foi um “materialista” na acepção cientificista contemporânea, embora um filósofo influenciado pelo naturalismo característico da tradição filosófica judaica, que também podemos ver em Espinosa. Husserl era judeu. Contudo, esta minha opinião não é corroborada por 99,99% dos especialistas na matéria, que preferem atirar Husserl para o cientificismo.
Posto isto, vamos ver se a gente se entende da forma mais simples possível.
Epoché
Para se entender a fenomenologia de Husserl, tem que se entender o “Cogito” de Descartes e o dualismo cartesiano.
Descartes “separou” a alma, do corpo humano; Husserl substituiu a “alma” cartesiana pela “consciência” psicológica e separou-a da realidade (mundo dos fenómenos) que inclui o corpo humano.
A consciência passa a ter uma vida própria como se de uma entidade autónoma (em relação ao mundo dos fenómenos) se tratasse, embora a lógica da consciência não se baseie no real (factos) mas em essências irreais, e portanto, subjectivas.
A consciência passa a ter uma vida própria como se de uma entidade autónoma (em relação ao mundo dos fenómenos) se tratasse, embora a lógica da consciência não se baseie no real (factos) mas em essências irreais, e portanto, subjectivas.
Uma das incoerências de Husserl foi dizer (de forma implícita): a “alma” cartesiana, como substância essencial, não existe. O que existe é a consciência que tem as mesmas e exactas características da “alma” cartesiana. Seria o mesmo que se eu dissesse: o computador em que escrevo este texto, não existe; o que existe é uma imagem da “aparência” deste computador na minha consciência. Neste sentido, Husserl é o extremo oposto de Bergson; se para este a alma era a própria consciência humana ― o que não é verdade ―, para o primeiro a consciência substitui a alma.
Para que se possa proceder à análise das “essências da consciência”, é necessário que esta seja separada do mundo dos fenómenos, da mesma forma que quando analisamos uma cena de um filme que estamos a ver através de um aparelho de DVD, paramos o filme na parte da cena que queremos analisar, isto é, fazemos uma pausa no filme para podermos analisar os detalhes da cena.
A esta paragem do “filme” que permite que se observe a realidade detalhada da “cena” que envolve a relação entre a consciência e as “aparências” do mundo exterior ― em que o detentor da consciência passa a observar a relação entre a sua própria consciência e o “mundo dos fenómenos” ―, consiste o conceito de “Epoché” de Husserl.
A esta paragem do “filme” que permite que se observe a realidade detalhada da “cena” que envolve a relação entre a consciência e as “aparências” do mundo exterior ― em que o detentor da consciência passa a observar a relação entre a sua própria consciência e o “mundo dos fenómenos” ―, consiste o conceito de “Epoché” de Husserl.
O “filme” acerca da realidade do mundo que rodeia a consciência é colocado em modo de “pausa”, e o observador pode então fazer uma análise das relações da sua consciência consigo mesma e com a realidade. O Epoché de Husserl suspende a realidade, pára as imagens do “filme” que relaciona a consciência com o mundo dos fenómenos, e com essa suspensão do “filme” pode-se fazer uma análise coerente e consistente das essências da consciência e da sua relação com o mundo exterior das “aparências” ― a esta análise das relações entre a consciência e o objecto, Husserl chamou de “intencionalidade”.
É através do conceito de “intencionalidade” que Husserl diverge de Descartes, na medida em que Husserl diz que a consciência nunca teve conteúdo porque “a consciência é sempre consciência de alguma coisa”, enquanto que para Descartes a consciência tinha conteúdo ― a consciência de Descartes era uma “coisa pensante”.
Fica por explicar, por parte de Husserl, a realidade dos meninos-prodígio como Mozart, que aos três ou quatro anos de idade compôs a primeira partitura musical. Será que só a genética pode explicar o caso de Mozart? E mesmo assim, será que a consciência de Mozart, com três anos de idade, era já e apenas “a consciência de alguma coisa”? Como é que a consciência de uma criança de três anos pode ser, fundamentalmente, temporalidade e abertura ao passado? Que passado tem uma criança de três anos que possa justificar a “significação” (que segundo Husserl é a superação do dado simples)?
Fica por explicar, por parte de Husserl, a realidade dos meninos-prodígio como Mozart, que aos três ou quatro anos de idade compôs a primeira partitura musical. Será que só a genética pode explicar o caso de Mozart? E mesmo assim, será que a consciência de Mozart, com três anos de idade, era já e apenas “a consciência de alguma coisa”? Como é que a consciência de uma criança de três anos pode ser, fundamentalmente, temporalidade e abertura ao passado? Que passado tem uma criança de três anos que possa justificar a “significação” (que segundo Husserl é a superação do dado simples)?
Husserl pressentiu o “buraco” argumentativo em que estava a cair, e por isso defendeu a ideia de que nem todas as experiências vividas têm um carácter “intencional” ― como por exemplo, a cor, o som, o contacto, a dor, o prazer, a sensualidade, etc. Mesmo assim, toda a teoria de Husserl não consegue explicar a consciência das crianças-prodígio; só a conjugação da fenomenologia com a filosofia quântica pode dar uma explicação cabal ― embora muito longe de ser completa ― para determinadas características da consciência.
Através do Epoché de Husserl, o EU passa a ser um espectador alheado da realidade exterior; o EU dissocia-se da realidade, age em relação a esta como se de um observador externo e independente dessa realidade se tratasse. Os artistas e os místicos fazem muitas vezes isto. No fundo, o Epoché de Husserl é um desdobramento da personalidade em pequena escala, em que o EU se separa emocionalmente do “mundo das coisas”, e age com uma vontade própria e independente desse “mundo das coisas”.
O “misticismo” de Husserl
Surpreendentemente ― e é aqui que está o “misticismo” que referi acima ―, Husserl defende a ideia de que através do Epoché se alcança o EU absoluto (para além do qual não é possível uma maior “redução” do Eu), e com o alcance do Eu absoluto, a consciência entra num estado de “evidência apodíctica”, isto é, a consciência deixa de agir a partir de dados empíricos mas através de “essências” ou “objectos ideais” que existem independentemente da experiência.
O conceito de “Eu absoluto apodíctico” espelha o “númeno” de Kant e a ideia de que existem conceitos “a priori” que não carecem de experimentação ― existem como sempre tivessem existido e como fizessem parte da essência do universo embora transcendam a realidade empírica; são como uma espécie de código genético das ideias, um ADN ideológico que faz parte do universo e que a consciência humana apreende e retrata, independentemente da experiência.
Por exemplo, para demonstrar que 2 e 2 são quatro, não precisamos de contar dois pares. Se tivermos uma mão cheia de fósforos, não podemos imaginar concretamente os quarenta fósforos contidos na mão embora nos sirvamos correntemente do número quarenta. Podemos conceber (na nossa consciência) um polígono de mil lados mas não o conseguimos representar.
Bertrand Russell ― este sim, um materialista empedernido ― foi um feroz crítico da concepção apodíctica do conhecimento através da sua “Filosofia da Análise Lógica” (lá iremos, um dia destes). Quer se queira, quer não, a essência apodíctica do Eu absoluto de Husserl (assim como o “númeno” de Kant) aponta para um limite do conhecimento empírico que só é ultrapassável através da transcendência do Eu. Através do Epoché, o mundo torna-se um fenómeno transcendental, “é apreendido como uma entidade correlativa das ocorrências, intenções, actos e faculdades subjectivas que nos permitem construir uma opinião sobre a sua unidade”. No fundamental, é isto que Hegel defende através do seu conceito de “fenomenologia” que referi acima, embora Hegel vá mais longe em direcção à “ideia absoluta” representada pela “razão universal”. Por isso é que não podemos considerar Husserl como sendo um empirista e materialista.
Convém dizer que a essência apodíctica do Eu absoluto de Husserl só ganha uma verdadeira coerência através da sua conjugação com a Filosofia Quântica. Se conjugarmos a essência do Eu absoluto de Husserl ― conseguido por Epoché ― com a noção de “ondulação quântica”, chegamos ao primado da consciência sobre a matéria, isto é, sobre o “mundo dos fenómenos”.
Objecto, noema e nòesis
Os objectos existem no “mundo dos fenómenos” (realidade), mas a percepção desses objectos é subjectiva (depende do “sujeito”). Seria como se vários pintores pintassem uma mesma paisagem: as pinturas seriam todas diferentes entre si, seja em textura, intensidade de cores ou na colocação das perspectivas ― as diferentes pinturas seriam sempre diferentes de uma fotografia a cores dessa paisagem (objecto). Podemos dizer que a fotografia representa a paisagem (objecto) como ela é na realidade, e as pinturas representam a forma como o objecto (a paisagem) é apreendida pela subjectividade (consciência) dos diversos pintores.
A cada uma das “pinturas” que reflectem a subjectividade do objecto, Husserl chamou de “noema”, e ao processo de apreensão do objecto por parte do sujeito (consciência), Husserl chamou de nòesis. O noema não é o objecto senão na forma como este é apreendido pela consciência, sendo que tanto o processo de apreensão do objecto (nòesis) como o noema, são subjectivos.
O desvio ideológico do Existencialismo e da Utopia Negativa
Husserl constatou uma evidência: a subjectividade existe, e a sua fenomenologia é puramente descritiva e não-dedutiva. Porém, a “subjectividade individual” vista por Husserl submetia-se a uma subjectividade universal, e mais uma vez vemos aqui o misticismo de Husserl, quando escreve (in “Crise):
“A psicologia é ciência das almas em geral (…) dedicando-se à subjectividade universal, que é una nas suas realidades e possibilidades”.
O que é a “subjectividade universal” senão a “consciência universal”? Se a “razão subjectiva” individual se pode unir ao Todo de uma “razão subjectiva” universal, não estamos perante a “razão universal” de Hegel?
Husserl (in “Ideias”) utilizou até a terminologia de Fichte, que como sabemos, foi um idealista e espiritualista:
“O Eu é-o nos confrontos consigo mesmo, e constitui-se em si mesmo e para si mesmo. Pode ainda enfrentar-se com outros, constituir um objecto para eles e ser por eles apreendido, experimentado, etc. Mas continuará do mesmo modo a existir para si mesmo e a ter um mundo ambiente que lhe é próprio e que será um não-eu, um conjunto de puros objectos que não são em si mesmos, como tais, constituídos do mesmo modo que o Eu”.
O que os existencialistas ― como Heidegger ― fizeram foi retirar a Husserl o carácter necessário e apodíctico do Eu (a prioridade ontológica do Eu que já existia em Descartes) e aproveitar somente a valorização da razão subjectiva que a fenomenologia apresentava. Neste sentido, Heidegger não foi só um fenomenólogo dissidente, mas aproveitou-se da parte menos importante da fenomenologia para imprimir um visão do mundo que impõe o valor da razão subjectiva sobre a razão objectiva. Mas não só Heidegger: Ortega y Gasset, Sartre, Foucault, Derrida e toda a tropa existencialista, desenvolveram apenas uma parte da filosofia de Husserl, deixando a mais importante de fora exactamente porque entrava em choque com uma visão existencialista puramente mecanicista e materialista do ser humano e da sua consciência. A Utopia Negativa da “Escola de Francoforte” fez exactamente o mesmo.
A prova de que Husserl é muitas vezes mal interpretado ― outras vezes propositadamente mal interpretado ― pelas elites políticas e intelectuais, é a ideia de Husserl da “alternativa fundamental da filosofia”: o Objectivismo, que contém o empirismo e as ciências, as verdades objectivas e o mundo, e o Transcendentalismo que encara o mundo partindo de uma perspectiva subjectiva, pré-científica e apodíctica (“a priori” de Kant).
“O espírito e só ele tem uma essência em si mesmo e por si mesmo; é autónomo e é apenas tendo em conta esta autonomia que pode ser tratado de uma forma verdadeiramente racional e de um modo radicalmente científico.” ― Husserl, in “Crise”
A fenomenologia de Husserl é um idealismo. Existe uma tensão interna ― quase contradição ― na fenomenologia que consiste na exigência de descrever o mundo que precede a consciência (descrição do mundo numénico ou apodíctico), em contraposição à exigência de mostrar que a consciência constitui todo o sentido. Se a consciência constitui todo o sentido, não haveria a necessidade de descrever o mundo que a precede. Mais uma vez, só a conexão da fenomenologia husserliana com a filosofia quântica poderia eliminar esta tensão interna.
O que Husserl pretendeu foi trazer o espírito ― no sentido literal de “alma” ― para a ciência, e é exactamente isso que a Filosofia quântica tenta fazer utilizando conceitos da Física quântica, e não já da Psicologia.
Fica demonstrado que Husserl não foi o precursor do existencialismo contemporâneo; foi o existencialismo (e a Utopia negativa) que deturpou Husserl, amputando a parte mais importante da sua filosofia.
Por outro lado, fica demonstrado que embora Husserl quisesse trazer a “alma” cartesiana para a ciência ― porque pensava que a subjectividade era completamente ignorada pelas ciências positivas ―, e exactamente por isso, ele não pode ser considerado um positivista, mas alguém que pretendeu fazer a ponte (através de uma “nova ciência”) entre o positivismo e o idealismo clássico.
Por outro lado, fica demonstrado que embora Husserl quisesse trazer a “alma” cartesiana para a ciência ― porque pensava que a subjectividade era completamente ignorada pelas ciências positivas ―, e exactamente por isso, ele não pode ser considerado um positivista, mas alguém que pretendeu fazer a ponte (através de uma “nova ciência”) entre o positivismo e o idealismo clássico.